O Mistério das Coisas
por baixo das Pedras e dos Seres
Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro - RJ
19 de outubro de 2024 a 5 de janeiro de 2025
Texto Curatorial
' Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.”
Tabacaria. Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
A história da relação entre os seres humanos e a Natureza, especialmente na era moderna, pode ser pensada através de uma genealogia do domínio e da subjugação, bem como da instauração de uma separação entre ambos. Esse processo se desenrola por meio do avanço da ciência e sua metodologia da experimentação empírica. “Nós devemos, por todos os meios, pôr a Natureza sob observação e forçá-la a nos responder às perguntas certas, através de métodos experimentais”, diz Francis Bacon, o filósofo, em seu livro Novum Organum (1620). A instauração desse paradigma trouxe avanços tecnológicos significativos nos séculos seguintes, mas também acarretou riscos e uma ameaça iminente para a própria sobrevivência e manutenção da humanidade.
O desafio diante da crise climática emerge de uma chave ambígua, onde aquilo que buscamos controlar e subjugar, no cerne da epistemologia moderna, carrega consigo não apenas a promessa de engenho e poder, mas também a semente de nossa própria destruição. O que antes parecia nos dar domínio sobre a Natureza agora revela sua face mais sombria. Compreender como essa ambiguidade opera permite a elaboração de novas rotas de fuga, nos convidando a imaginar outras formas de habitar o planeta, de ser e estar no mundo, principalmente aquelas que evoquem uma busca pela não separação entre o ser humano e a Natureza.
As artes visuais e as práticas artísticas tensionam essas questões, ao fazer emergir a possibilidade de um olhar crítico. Tanto os conceitos de natureza quanto de arte possuem uma vasta gama de expressões e desdobramentos teóricos, sem que uma definição única seja capaz de abranger completamente a complexidade de ambos. A relação íntima entre arte e natureza se deu de diferentes formas ao longo da História da Arte. Inicialmente, a arte muitas vezes servia como um reflexo da natureza, onde a representação figurativa e verossímil das formas naturais era vista como o ápice da expressão artística.
Com o advento da modernidade nas artes visuais, esse paradigma foi superado, permitindo o surgimento das inúmeras formas de expressão e práticas artísticas que vemos na contemporaneidade. Aventurar-se pelas diversas práticas artísticas hodiernas é compreender que essas criações “materializam uma forma de viver e trazem um modelo específico de pensar para o mundo dos objetos, tornando-o visível”, como aponta o antropólogo Clifford Geertz.
A exposição "O Mistério das Coisas por Baixo das Pedras e dos Seres" é um ato de apresentar uma exposição coletiva com práticas artísticas de artistas com diferentes formações, pesquisas e perspectivas, sendo um exercício curatorial que reconhece a curadoria como uma força criativa, capaz de gerar narrativas, ao fazer emergir questões e debates que outrora estavam ocultos, a partir das obras de arte e dos próprios artistas. Ao explorar a relação entre arte e natureza na prática artística contemporânea, a exposição busca fomentar debates e reflexões sobre temas que se fazem urgentes.
A não separação entre Natureza e Cultura, entre o ser humano e a Natureza, é o caminho essencial para subverter o paradigma moderno, centrado no antropocentrismo — uma visão que coloca a atividade humana como superior e central em relação a todos os outros seres que compartilham este planeta. A condição humana, antes de qualquer coisa, é habitar o mundo em conjunto com esses outros seres, transcendendo dicotomias simplistas. Parafraseando Tom Jobim, "é impossível ser feliz sozinho". Reconhecer que a humanidade é parte integrante da Natureza e dependente dela para a própria sobrevivência dá origem ao econcentrismo, uma resposta crítica ao antropocentrismo. Esse entendimento inaugura uma verdadeira jornada de preservação e continuidade da espécie humana, uma tarefa urgente que não pode mais ser adiada.
Esse debate está profundamente enraizado nas questões contemporâneas da biopolítica, ganhando relevância à medida que o impacto das ações humanas se revela insustentável. A separação entre humano e Natureza se mostra impossível; repensar essa relação é uma necessidade imperativa. Nesse contexto, a arte contemporânea e as práticas artísticas que dela surgem, emergem como uma vanguarda do pensamento crítico, oferecendo um espaço de resistência e esperança, onde novas possibilidades de coexistência e compreensão entre todos os seres podem ser forjadas. A arte torna-se, assim, uma plataforma vital para imaginar e construir futuros que rejeitem a destruição e celebrem a vida.
Fabricio Faccio